terça-feira, 20 de março de 2012

Um Disparo Certeiro

Este é o pequeno conto que fiz com base no prelúdio de uma personagem que já postei aqui antes. Existe muita coisa por baixo dessas simples palavras e destas meras criações. Espero que gostem!

"A tensão se estabelecia em seu corpo, ela se concentrava em seu dever para manter a mira. Já fizera aquilo dezenas de vezes. Toma fôlego, como se esse seu último sopro de ar antes do clímax fosse também o dele.

E atira.

O corpo recebe o impacto e tomba ao chão.

Ela respirou profundamente mais uma vez e pôs de volta a arma no coldre. Aproximou-se devagar, até que pudesse se inclinar sobre o saco de carne morto, havia um buraco em suas costas agora. Empurrou-o para o lado, virando-lhe de frente. O jovem parecia um inseto morto, um ser imundo coberto de trapos, nascido das latas de lixo. Os olhos fitavam algo muito além da mulher. Mal devia ter 16 anos, uma alma perdida por um mundo de pecados.

- Que Deus acolha seu ser, meu bem... – ela sorriu, e pegou a bolsa jogada ao lado dele.

Entre outros utensílios femininos, uma carteira com pouco dinheiro e uma identidade. Pertencia a uma mulher loira. Ela não se lembrava de tê-la visto, pegou o garoto já durante a fuga. Bem, tanto faz, havia menos um rato de esgoto desprezível vivo.

Ela deixou a bolsa cair novamente e tirou um maço de cigarros do bolso da calça. Escolheu um, guardou o maço, tirou um isqueiro prateado e acendeu. Tragou numa meditação profunda e soprou o ar poluído para o céu, voltando à sua caminhada por ruas vazias; cobertas com um frio véu noturno. Estava tudo tão tranquilo, tão imune ao caos do centro da cidade, como se aquele pequeno beco estivesse além deste mundo.

Era a Alemanha de 1985. Mais cedo, logo pela manhã, Dana fora atender um chamado perto de um bar. O vagabundo segurava uma faca próxima ao pescoço de um homem, fazendo-o de refém contra os outros policiais. Dana odiava reféns. Ela pediu para o homem acalmar-se, pois sua morte era necessária para salvar outras vidas. Ele se apavorou e nem sequer teve tempo de protestar. Uma bala atravessou seu peito e logo outra atravessou a cabeça do criminoso. Graças a esse feito, provavelmente seria expulsa ou muito, muito afastada do emprego. Mas a falta de policiais obrigou seu chefe a apenas dispensá-la durante o resto do dia, enquanto não decidia o que fazer. Michael - um colega de trabalho frequentador de prostíbulos nas horas vagas e de caráter bastante duvidável - lhe sacudira pelos ombros, perguntando se perdera o juízo. Ela passou o dia inteiro se perguntando a mesma coisa.

Não demorou a chegar à igreja, o único lugar em que se sentia em paz. Jogou o cigarro para a rua e tentou relaxar antes de entrar. Pensou em todas as pessoas mortas com suas balas, nas famílias e nas frágeis mentes que traumatizou. Nem viu o rosto do primeiro. Pensou em seus pais, uma bela mulher submissa e um policial violento; há seis anos abandonara a casa deles para morar com Michael e em todo esse tempo não quis saber se ainda estavam vivos. Aliás, não, nunca teve relações com Michael; nas poucas noites que ele dormia em casa, estava tão bêbado que perdia a consciência dois passos na frente da porta. Pensou também no quanto sua vida parecia destinada aos confins da humanidade, no quanto sentia-se podre por aquelas vielas. 

Entretanto, nada destas lamentações se comparava ao valor de seus atos.
Ela então sorriu para o templo, pensando na primeira vez que entrara naquele local sagrado. Deixando para trás a culpa e o sofrimento, Dana abriu uma das grossas portas de madeira e encheu-se de amor e gratidão.

Deus.

Era Ele quem lhe dava a coragem para cada disparo. Era Ele quem selecionava os pecadores a falecerem em seu caminho. Era Ele quem chamava seu nome todas as manhãs e lhe fazia acordar alegre, mesmo sabendo o que ia acontecer. Era Ele quem lhe mandava ser tudo que o pai não conseguia e a mãe nunca podia. Ele, e só Ele acreditava em seu potencial de matar o mal nas entranhas distorcidas das almas de seus filhos. Ninguém entenderia, somente ela.

Dana sentou-se num banco próximo ao altar, admirando as esculturas e a imagem de seu amado Senhor, seu Salvador.  “Eu matarei...”, disse em pensamentos, “eu matarei todos aqueles que o Senhor me mandar. Deixe-me ser sua arma de punição, e ajudá-los a alcançar a glória divina.”.

Duas balas velozes passaram ao seu lado. Atingiram o padre, que caiu tão morto quanto o ladrãozinho de antes.  Ela olhou apavorada para a porta da igreja de onde os disparos vieram e encontrou Michael, já um tanto alcoolizado. Ele sorria, quase gargalhava.

- E agora, pedófilo... onde está seu Deus?

A policial entendia. Então Michael pegou o caso das suspeitas em cima do padre local, sobre o envolvimento dele com menores de idade.  Sem qualquer remorso ou sinal de humanidade, ela retirou sua arma, destravou-a e lançou um tiro certeiro no peito do colega, que a encarou incrédulo antes de falecer. Os olhos de Dana ardiam em fúria. Como ele ousa matar na casa de Deus? Os motivos não importavam, toda a paz do local fora corrompida, dando para ela a liberdade de vingar-se do padre indefeso. Ela olhou para o corpo de Michael e fez o sinal da cruz, pedindo piedade pelos erros dele.

- Perdoa, senhor. Ele não sabia o que fazia...

Um arrepio subiu toda a espinha da mulher que instintivamente olhou para o altar. Sobre o púlpito, havia um jovem que se erguia de pé com todo o esplendor dos príncipes. Ela não precisou ver os membros celestiais - que logo nasceram de suas costas - para saber que ele não pertencia à mesma realidade dela. O ruivo - tão belo quanto o mais sedutor de todos os amantes - possuía um gigantesco par de asas de um branco absoluto e uma expressão indiferente, quebrada apenas por seus olhos dourados e penetrantes, como os do mais cruel predador. Dana caiu de joelhos, toda sua força se esvaiu e lágrimas inexplicáveis brotaram de seus olhos. Toda a sua vida e seus feitos, cada pensamento tornou-se insignificante perante aquele ser. O corpo dele emanava uma luz fraca, capaz de purificar as trevas e aquecer as almas dos que partiram. Um enviado de seu tão amado Deus veio vê-la.

O anjo desceu sutilmente da mesa, aproximando-se dela com passos calmos, deslizando sobre o chão.

- É um prazer conhecê-la, Dana. Um dos tantos vermes que distorcem a palavra do Pai para proveitos egoístas... – ela teria protestado, teria ficado chocada, mas diante de uma voz tão bela, cantando em seus ouvidos, embriagou-se imune aos seus significados e esqueceu como mover os lábios.

O anjo tocou-lhe a face, um tanto irritado. Ergueu-a para fitá-la melhor. Sua mão era fria como gelo e ela sentiu a bochecha dormente. Tudo que alguém tão frágil quanto Dana podia fazer era observar a grandiosidade do ser alado, esperando até mesmo uma recompensa por seus árduos trabalhos para com os céus.

- Vocês me chamam Miguel, o líder das tropas do paraíso. Somos como comandante e soldado, já que te consideras arma de Deus. – ele pressionou sua pele, constatando a fraqueza da matéria humana – Seria mesmo capaz de resistir a nossas batalhas?

Miguel soltou-a, dando-lhe as costas, e caminhou de volta para o altar. Recuperando aos poucos a razão, ela não entendeu por que ele falava aquelas coisas. A admiração foi se transformando em confusão e lentamente... em medo. Seus olhos seguiam-no involuntariamente.

- Eu já quis ser como vocês... Fazem de tudo para que no final a felicidade esteja convosco. Chegam a ignorar fatos tão simples. – ele então pegou a bíblia sobre o altar e pôs-se a folheá-la – Vocês apenas... não entendem nunca. O que entendem disto... – jogou a bíblia na frente de Dana – não passa da compreensão de uma criança sobre Hamlet. – ele olhava para a mulher, com desprezo, fazendo-a congelar de terror quanto ao que estava por vir – Você só faz parte de um grupo ainda mais doente, que se dão títulos e direitos tolos, que nunca seriam capazes de compreender a graça divina! – porém o olhar dele tomou uma leve tristeza que ela não pode ver – Se a graça divina já não estivesse morta...

Num piscar de olhos, o anjo estava na frente de Dana, que não teve tempo de mover-se ou pensar. Ele cravou uma mão gelada no seio dela, rasgando sua carne e quebrando suas costelas, até agarrar o pequeno coração. Ela continuava viva, estática com a mão dele dentro de si. Não sentia dor, não sentia nada, aliás. Apenas o frio, espalhando-se do buraco para o resto de seu corpo, bem devagar, enquanto o sangue lhe escapava. A vista começou a ficar embaçada. Miguel segurava seu coração pulsante ainda junto ao corpo, tão indiferente quanto no início da conversa, mantendo-a consciente com habilidades divinas, para que escutasse o que tinha a dizer, num sussurrar doce e próximo ao seu ouvido.

- Os homens morrem por suas palavras. Os anjos morrem por sua pureza. Deus adormeceu no sétimo dia e nunca mais acordou. Tudo se tornou parte do caos, meu bem.

Ele finalmente puxou seu coração para fora, arrancando violentamente sua vida. Caminhando de volta até o altar, ele admirava o órgão na mão ensanguentada como um colecionador. Sentou-se no púlpito mais uma vez, com as pernas cruzadas e colocou-o ao seu lado. Passou a mão nos cabelos, onde o sangue era imperceptível manchando os fios vermelhos. Pensamentos de séculos passados vieram lhe atormentar outra vez, uma verdade perturbadora que poucos sabiam e ainda menos dentre estes eram capazes de suportar:

- Deus está morto... E o mundo cai com ele."

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