sábado, 7 de abril de 2012

Um encontro de irmãos - II

(Antes)


"Os dois entraram numa loja de conveniência de um posto de gasolina não muito longe dali. O homem velho próximo a uma das bombas olhou para eles com uma cara feia e entrou junto, indo atendê-los atrás do balcão. Cramer impressionou-se quando Lucy disse ter mantido a promessa de nunca beber e comprou uma cerveja só para si. Deu uns trocados a mais para que o velho não os incomodasse. Eles se encostaram um ao lado do outro na parede lá fora, admirando o céu poluído e suas poucas estrelas, como sempre gostaram de fazer.
- Muitas vezes eu tentei acreditar que te veria de novo. – confessou a pequena, olhando-o de relance a tomar um gole. – Achei até que havia morrido.
- Quase morri, muitas vezes. Achei que você seguiria outro rumo, longe dessas coisas.
Um curto silêncio dominou o espaço entre o casal. Por um instante ela pensou que ele estivesse brincando, subestimando-a. Porém Cramer estava sério, ele se preocupou. Era ela quem mesmo agora mal via os perigos do caminho que escolhera trilhar.
Uma memória de medo e horror veio-lhe à mente. A imagem de Léo sendo dilacerado de dentro pra fora por uma besta infernal. A criatura crescia enquanto saia da garganta do rapaz, esticando as patas esqueléticas para fora de sua boca e forçando-a a abrir bem mais do que o limite, quebrando-lhe a mandíbula e rasgando a pele. Aos poucos, cabeça e corpo emergiam do garoto: uma espécie de lobo gigantesco e muito, muito magro, como que sugado para dentro de seu próprio corpo. Também nascia nos ossos remendos de pele falha em alguns cantos e penduradas em outros, com pequenos bocados de pelos pretos em lugares aleatórios. A carniça lupina possuía em seus olhos apenas dois pontos vermelhos no fundo dos globos oculares, suas orelhas estavam feridas e sua boca abria-se bastante para exibir fileiras de presas na parte superior e inferior. Apenas um monte de presas mortais.
Foi o primeiro demônio que Lucy e Cramer viram
- Quando aquela coisa abriu o Léo eu senti muito medo sim. Eu me perdi fitando aquilo e esperando minha vez, até que você me arrastou para longe. Nós de alguma forma escapamos enquanto ele devorava o resto de nossos amigos, Cramer. Eu nunca me perdoei e nunca perdoei aquele cachorro.
Ele entendia. Em si mesmo também residia a culpa e o ódio, por causa deles esqueceu a garota e pôs-se a caçar. Infelizmente ainda não era a hora deles, e ambos foram presos pelo dono do cachorro: um demônio não muito simpático conhecido como Abigail. Abigail era muito diferente de seu bicho de estimação; como a maioria dos demônios da Terra, vestia-se de uma bela pele alva em um corpo feminino, com lindos cabelos curtos e brancos e olhos azuis sem qualquer expressão. Ela brincou com os dois, mandando alguns de seus soldados mais fracos persegui-los, mas Cramer os protegeu. O próprio demônio então se interessou por eles e os instruiu na arte da morte. Cramer aceitou sem hesitar, planejando uma revolta futura para vingar-se pelos amigos, e Lucy fora convencida a ficar ao lado de seu amado.
Durante dois anos, o casal fora preso numa cela de um velho castelo onde Abigail abrigava sua prole e de onde comandava a cidade próxima. Eles recebiam apenas os cuidados necessários para a sobrevivência e lutavam contra carniçais dos quais nunca conseguiam vencer. Viram mulheres e crianças servindo de alimento para estes seres, conheceram a imundice, a fome e a sede, sentiram na pele o que é ter sua humanidade esmagada pela natureza animal. Foram treinados assim afinal, como novos animais para a proteção do local. Receberam armas especiais e informações básicas que no futuro os possibilitaria a seguirem na estranha profissão.
Depois de tantas vezes presenciando os incríveis poderes de Abigail quando este castigava seus servos mais desobedientes, os dois resolveram fugir, deixando a vingança para um futuro no qual fossem mais fortes. Por sorte talvez, Abigail nunca os procurou. Cramer, no entanto, queria impedir de qualquer forma que Lucy viesse com ele, então se separou da garota. Ele a subestimou e apenas muito tempo depois começou a ouvir os boatos sobre as caçadas dela.
- Muitas coisas aconteceram depois daquele dia... – ele suspirou e deu outro longo gole na cerveja, fitando-a curioso quanto a quem era, apesar de não ter notado muita diferença com a Lucy do passado – Nós não somos mais os mesmos. – certo?

A garota sorriu para o chão. Não, não eram."

(Continua...)

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