terça-feira, 6 de novembro de 2012

Uma Ilha

   "Havia uma menina, e seu tio a vendera, escrevia o senhor Ibis com sua caligrafia perfeita para uma placa de condecoração em cobre.
   Esta é a história; o resto é detalhe.
   Existem relatos que, se abrirmos nosso coração a eles, vão nos ferir muito profundamente. Olhe - aqui está um homem bom, bom de acordo com seu próprio ponto de vista e com o de seus amigos: é fiel e sincero para com a esposa, adora seus filhinhos e passa o maior tempo possível com eles, preocupa-se com seu país, faz seu trabalho pontualmente, da melhor maneira que pode. Então, com eficiência e boas intenções, extermina judeus: ele aprecia a música de fundo que toca para acalmá-los; adverte os judeus para que não esqueçam seus números de identificação quando vão para o banho - muitas pessoas, ele explica, esquecem seus números e pegam roupas erradas quando saem do banho. Isso acalma os judeus. Haverá vida, eles se asseguram, depois do banho. Nosso homem supervisiona os detalhes de levar os corpos até os fornos; e, se há alguma coisa que faz com que ele se sinta mal, é ainda permitir que a exterminação da gentalha com gás o afete. Se fosse um homem verdadeiramente bom, ele sabe, não sentiria nada além de alegria por ver a terra livre de suas pestes.
   Havia uma menina, e seu tio a vendera. Colocado assim, parece tão simples.

   Nenhum homem, proclamou Donne, é uma ilha, e ele estava errado. Se nós não fôssemos ilhas, estaríamos perdidos, afogados nas tragédias dos outros. Nós nos isolamos (uma palavra que significa, literalmente, lembre-se, ser transformado em ilha) da tragédia dos outros por nossa natureza de ilha, e pelo desenho e pela forma repetitiva das histórias. O desenho não muda: havia um ser humano que nasceu, cresceu e então, por causa de uma coisa ou de outra, morreu. Pronto. É possível preencher as lacunas com base em sua própria experiência. Tão sem originalidade como qualquer outro conto, tão único como qualquer outra vida. Vidas são flocos de neve, formando figuras que já vimos antes, tão parecidos uns com os outros quanto as ervilhas de uma vagem (e você já olhou para as ervilhas em uma vagem? Eu quero dizer, olhou mesmo pra elas? Depois de um minuto de exame atento, não há chance de você confundir uma com a outra), mas, ainda assim, única.
   Sem indivíduos, enxergamos apenas números: mil mortos, cem mil mortos, "o número de vítimas pode chegar a um milhão". Com histórias individuais, as estatísticas se transformam em pessoas - mas até isso é mentira, porque as pessoas continuam a sofrer em números que, por si só, são entorpecentes e sem sentido. Olhe, veja a barriga inchada do menino e as moscas que andam no canto dos olhos dele, seus membros esqueléticos: vai ajudar se você souber seu nome, idade, sonhos e medos? Se enxergá-lo por dentro? E, se ajudar, será que não estaremos prestando um desserviço à irmã dele, que está ali ao lado, estirada na poeira abrasadora, uma caricatura distorcida e inchada de uma criança humana? E daí, se lamentarmos por essas duas crianças, será que elas agora passarão a ser mais importantes para nós do que as milhares de outras crianças atingidas pela mesma fome, milhares de outras vidas jovens e contorcidas que logo se transformarão em alimento para as moscas?
   Nós desenhamos nossos limites ao redor desses momentos de dor... continuamos em nossas ilhas, e eles não podem nos ferir. Ficam escondidos sob uma cobertura nacarada, suave e segura para que escorreguem, como as ervilhas, de nossas almas sem que sintamos dor verdadeira.
   A ficção nos permite deslizar para dentro dessas outras cabeças, para esses outros lugares, e olhar através de outros olhos. Então, no conto, paramos antes de morrer, ou morremos de forma indireta ou sem prejuízo e, no mundo além do conto, viramos a página ou fechamos o livro, e terminamos de viver nossa vida.
   Uma vida que, como qualquer outra, é diferente de todas."

(Neil Gaiman, Deuses Americanos, pág. 243 à 245)

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