Hoje pela manhã comecei a escrever uma história separada do projeto que postei aqui ontem. Então me veio a ideia de uni-los e mais ideias apareceram, é assim que nascem meus livros - e ironicamente nunca morrem, ficam no computador esperando serem desenvolvidos. Como está escrito no título, são acontecimentos anteriores àqueles pesadelos. Resolvi postar tudo o que escrevi desta nova parte até agora, espero que gostem.
"Quantas noites sem dormir? Ela perdeu a conta. O mau-humor explodia sua cabeça dentro do capacete, via tudo e todos com desprezo de mil reis. E o sol escaldante lhe perseguindo lá em cima era agora seu maior inimigo, a ventania provocada pela velocidade da moto era o bafo dele tentando matá-la. Estava exausta e furiosa, contando cada segundo que demorava para chegar a seu destino. Lucy tinha mais o que fazer do que enfrentar uma estrela gigante. Algo muito mais interessante lhe chamava na Cidade Morta. Era quase palpável o desejo de voltar para lá, mesmo tendo fugido, mesmo tendo amaldiçoado tudo que deixara para trás tantas vezes quanto a memória podia contar. Sim, alguém gritava na sua cabeça para que voltasse e este alguém era seu verdadeiro alvo, um ser estúpido que queria lhe ver entre seus irmãos e inimigos, entre suas lembranças. Ele veria, sentiria em sua pele como uma faca afiada. Ou nas balas de seus revólveres, ou com o punho dela em sua cara.
Depois de seis horas de viagem, Lucy já estava dentro da área selvagem da cidade. A estrada atravessava agora uma floresta densa e escura, cenário de várias lendas. Já estava de noite e o clima mudara drasticamente. O asfalto era acariciado por uma névoa ainda fraca e o vento gelado e a umidade dificultava sua respiração muito mais do que quando estava quente. Olhar para os lados e encontrar as gigantescas árvores - que por milagre não invadiam seu caminho - impedia-lhe de sequer pensar em parar a moto ali para tirar um casaco da mochila em suas costas. Não tinha escolha a não ser infiltrasse como uma parasita o mais rápido possível e alcançar logo a civilização. Uma única placa ficou para trás, onde estava escrito “Damian”.
O tempo real da travessia ela nem se importara em calcular, parecia ter levado meia-hora. Mais na frente, a estrada passava por uma ponte de pedra cinzenta sobre um rio sem nome. Agora sim estava em Damian. Era engraçado. Lucy seguia pela estrada principal – chamada de Avenida dos Cruzados - , margeada por lojas pequenas, alguns restaurantes, shoppings e outros comércios. A escuridão da floresta dera espaço para uma explosão de luzes e pessoas por todos os lados, aproveitando a agitação da noite para passear com os amigos ou encontrar pessoas interessantes. O mundo fora de Damian não existia. Todos estavam muito bem arrumados, enquanto Lucy vestia uma calça jeans tão empoeirada quanto a velha moto, camiseta branca e a jaqueta de um motoqueiro que roubou semana passada. Mesmo assim todos estavam ocupados demais para dar atenção à visitante em meio aos carros luxuosos. Vendo aquela avenida, Damian era igual a qualquer metrópole agitada, com tudo que uma pode oferecer. E algumas coisas a mais.
Lucy sabia bem o que estava por trás das cortinas.
Três anos antes, a garota era como qualquer jovem: tinha amigos e festas para ir, compras para fazer com o dinheiro que os pais lhe enviavam, uma das melhores alunas na faculdade local. Porém algumas coisas simplesmente acontecem e ela sabia que não podia ter evitado, um pequeno descuido foi suficiente para que visse os bastidores deste paraíso moderno. Um acidente comum com velhos amigos bêbados. E Sheol.
Voltando para o presente, Lucy dobrou em certa esquina e seguiu com velocidade por uma ramificação vazia da rua. Os postes de luz pareciam enfraquecer a medida que ela se distanciava da Avenida dos Cruzados, invadindo o sudeste da cidade como uma flecha. Pessoas e carros evitavam aquela área depois das 20h e já passavam das 22h, em pleno sábado. Logo o som de sua moto parecia um rugido animalesco a profanar um local sagrado. Sagrado? Para demônios, talvez. O cenário mudou por completo. Agora havia prédios residenciais descascando, bares imundos, becos escuros. O subúrbio de Damian, paraíso dos ratos. Mas Lucy preferia o subúrbio ao centro. Pelo menos ali a verdadeira face da metrópole era um pouco mais visível, os diretores do espetáculo não se preocupavam tanto em manter o disfarce sobre o depósito de lixo. Era calmo, cheirando a cigarro, álcool e medo, como a cidade inteira deveria ser.
A garota parou sua moto na frente do único bar aberto, um lugar imundo freqüentado principalmente por vagabundos ou pessoas cujas vidas foram arruinadas e tentavam se alegrar com bebidas, brigas e vadias. A iluminação era horrível. Possuía três mesas de madeira distantes, com riscos de facas ou canivetes e algumas cadeiras, outros bancos empoeirados estavam na frente do balcão, sempre melado por bebida derramada ou baba de bêbados que não raro dormiam ali mesmo. Ela fitou por alguns segundos uma mesa específica, na qual havia um nome feminino escrito. Judith. Lucy matara o homem que escreveu aquilo na primeira que estivera neste bar.
Ela foi em direção ao balcão, carregando a mochila de lado. Atrás dele, prateleiras e frízeres, com tudo o que um bar tem que ter, e uma porta que dava para a casa do dono. Um homem careca veio atende-la. Vestia apenas uma bermuda, exibindo o tórax peludo e musculoso. Tinha a pele escura, a barba de fios grossos e curtos se espalhava pelo queixo até metade das bochechas, lábios rachados segurando o cigarro no canto da boca. Um pano preto cobria seu olho direito, enquanto o outro - de um marrom tão escuro que muitas vezes achavam ser preto - fitava sua cliente com a sobrancelha erguida. A primeira impressão que se tinha era de um soldado aposentado que esquecia quem matou com bebedeiras. Mas não era bem assim, Joe era antes de tudo um bom homem.
- Guarde a desconfiança para os bêbados, Joe – ela tirou o capacete, tentando pentear com os dedos seus cabelos curtos e vermelhos enquanto sorria, os olhos verdes brilhavam como duas esmeraldas."
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